Um dia no meio de um problema ou no meio de um nada, de um vazio, a linha da vida será cortada pelas mãos massacradas que ninguém agarrou.
Que a faca não seja precisa para tirar a vida àqueles que um dia ousaram amar distraídos, que seja a alma amachucada a definhar lá dentro, que lhes tire a cada dia que passa os movimentos, a agilidade, os sentidos, a vida que querem viver com vontade de morrer.
Que se encoste um ferro quente na pele, fundindo a dor de uma vez por todas no corpo até ela chegar à alma. Que essa dor transforme quem a sofrer para sempre, e que a feche de uma vez por todas aos afectos.
Que os melancólicos fiquem para sempre sozinhos com a sua tristeza, dentro de quadrados assimétricos, enquanto os pianos e os violinos lhes arrancam a solidão à dentada das suas cabeças.
Que nos corações de quem não ama, nasça uma árvore sem frutos nem flores, uma árvore sem folhas, uma árvore que não é nada, que não serve para nada, para que eles se sintam preenchidos no espaço para sempre condenado ao vazio.
Que se deixem ficar quietos os que tem a cabeça a andar às voltas, agitados e confusos, enquanto vêm círculos a moverem-se nas paredes; que se deixem a enlouquecer os que se julgam donos das certezas, que o delírio lhes anule toda a razão.
Num lugar branco e claro, que se abram os olhos daqueles que tudo quiseram ver, seja a ametropia a sua doença enquanto os seus olhos ardem; que se oiça uma música alegre e os pensamentos por si processados sejam gritados até eles caírem sem reacção.
Que se cortem as mãos a quem escreve, que se lhes retirem os olhos para que mais nenhuma linha seja lida, que lhes arranquem os ouvidos para não poderem jamais compreender as novas história, que lhes arranquem a língua para que nunca mais envenenem a mente dos que sempre quiseram escrever e ser génios.
Que a justiça seja uma palavra com um significado justo e imutável na mente de todos os anormais, que se encham todos os rostos com um sorriso estúpido, e que toda a gente seja ignorantemente feliz. Que ninguém seja condenado por ser maravilhosamente cruel, por ser fantasticamente louco, ou por ser simplesmente morto dos estímulos do mundo real.
Que a marcha nupcial seja trocada pelo Requiem de Mozart, e que ninguém case por amor, mas por ódio ao outro com quem terá de conviver até converter todo esse sentimento em acção.
Que a música não seja somente um barulho, mas a energia ejaculada pela terra para dentro de nós, que seja mais que um motivo para pessoas sem cérebro agitarem os corpos suados para obterem sexo, que seja fonte de amenomania.
Que a imaginação seja um lugar possível de habitar, onde tudo é fabuloso e funesto, onde se pode encostar a cabeça e dormir sobre o que se ve dentro do corpo, onde a alma é mais que uma extensão de nós mesmos, onde tem um corpo sem roupas, sem frio e sem calor.
Que o sexo se faça somente com a cabeça, que seja mais que uma causa de desgaste de corpos devido ao atrito, que seja um estado de pura alegria e êxtase equivalente ao conhecimento de muitas teorias.
Que habitem aqui, seres desconhecidos que sofram de desconfiança crónica para com os outros, que sejam observados, subestimamos, provocados, humilhados, controlados e traídos pelas suas próprias alucinações, e que se escrevam as mais interessantes histórias sobre eles.
Que o suicídio seja a morte natural de todos os que recorrem sem intenção à vida, que dela sejam donos, e que a morte não seja mais que um orgasmo inversamente proporcional à existência, e à razão sensível.
Que não se sofra nunca mais de neurastenia, que tudo seja irritantemente perverso e soez, que os olhos ao se abrirem não consigam ver mais nada que desgraça.
Que todo este orgulho e tristeza me derrubem sobre os joelhos, com a cabeça baixa em direcção ao centro da terra, que me amarrem as mãos e me tapem os olhos, que me vejam os lábios com desdém sempre que deles saírem ideias absurdas.
Quando o mundo acabar, fecharei a porta e no escuro procurarei alguém igualmente estranho que me faça cócegas no coração.