quarta-feira, abril 30, 2008

Psicanálise

Hoje escrevo para não chorar.

Hoje o papel vai borrando letra a letra as lágrimas presas com força na ponta da caneta. E escrevo sem parar. Porque preciso de desabafar, porque é inutil gritar para o ar o que me apetecia cantar. É dia de não saber o que sinto, é dia de não me saber sentir. Bem. Mal. Mais ou menos, nunca. Não gosto de coisas mais ou menos. Aborrecem-me de morte coisas que estão para ser, coisas que nunca vão ser. E morro. Porque eu sim, posso morrer a cada palavra que mastigo calada. Engasgo-me. Antes morrer do que chorar. Que chorem depois por mim quem sobreviver. Se é que o sabem fazer. Dúvido. Que gritem então, que soltem para o ar gargalhadas cinicas. Mas não me deixem morrer descalça. Por favor. Sapatos de salto alto. Já que não choro ao menos que me deixem entrar no inferno a ouvir o barulho dos saltos no chão.


Hoje escrevo para não chorar.

quinta-feira, abril 24, 2008

A neta do meu avô.


Só me dei conta que já não era criança quando comecei a ver as pessoas morrerem. Quando somos mais novos a morte é algo absurdo com o qual imaginamos somente lidar quando crescermos e tivermos tempo para pensar. Quando a morte de alguém nos afecta o suficiente e sentimos necessidade de nos despedir deixamos de lado a infância. As crianças não lidam com a morte, as crianças respeitam-na mesmo não sabendo ao certo do que se trata.
Sempre imaginei que a morte fosse uma coisa boa até porque as pessoas que sabia mortas tinham sido vítimas de doença prolongada ou de velhice. Era natural interpretar as coisas como um ciclo, e não era por me dizerem na catequese que as pessoas depois de morte iam se encontrar com Jesus que achava tudo aquilo melhor. Era natural e acontecia a toda gente, chegava a hora e lá íamos nós, porque merecíamos não ser velhos e não estar doentes em outro lugar. Era bom pensar assim. Até que um dia o meu avô paterno resolveu se suicidar. E agora? Para onde vão as pessoas que morrem e não estão doentes? Porque é que ele não queria viver mais se, para uma criança de seis anos viver é a melhor coisa do mundo? Temos a mãe, o pai, os amigos, os brinquedos, a escola e o gato. Não percebi, e apesar não compreender que aquilo era mesmo uma despedida, estava mais preocupada em perceber como é que tinha acontecido. Eu sabia que havia um motivo. Foi a descoberta desse motivo que fez com que passasse do mundo das crianças para o mundo inexplorado dos adultos. Fui compreendendo a morte do meu avô ao longo dos anos. Gosto de pensar que morreu de desgosto, que se matou por amor. Morrer por amor é uma forma bonita de nunca abandonar a infância, afinal o amor é sempre possível. O meu avô suicidou-se por saber que a minha avó estava com um cancro terminal que em breve lhe tiraria a visão e também a vida. A minha avó não morreu da doença, a minha avó morreu para ir ter com o meu avô, porque depois da morte a criança que eu fui, acreditava que não havia mais nada além da paz de se estar como sempre se desejou.
Não fui ao funeral de nenhum dos meus avós paternos, estava ocupada a descobrir a morte e ainda não tinha noção do que seria uma verdadeira despedida. Como era de esperar vi muito mais gente morrer, pessoas velhotas, pessoas doentes e outros que morreram por amor.
Só com 11 anos descobri que a morte envolvia uma despedida e que isso era o mais difícil de tudo, depois de compreender os motivos. O meu avô materno adoeceu com um problema nos pulmões e passou muito tempo no hospital. Ainda não era muito velhote, mas era meu avô e por isso tinha de ser considerado assim. O problema da morte do meu avô estava ligado ao saber que isso ia acontecer e também ao facto de isso demorar tanto para acontecer, o que me arrastou num processo de adiar despedidas . Até um dia. Foi desolador. Depois de descobrir o que é a morte com seis anos, foi muito mais complicado aceita-la e conseguir despedir-me de quem não morre por amor, mas “por favor”.
Senti muitos remorsos de não ter ido ao funeral do meu avô despedir-me dele como fizeram outras pessoas que até gostavam menos dele que eu. Mas o meu avô deu uma ajudinha para se despedir de mim e nesse mesmo dia fez com que eu corresse sem parar atrás dele que ia num autocarro vazio. Corri até não ter forças. Ele ao ver-me parar, disse-me adeus e sorriu. Ele estava feliz, e disse-me para ser feliz como sempre fazia, chamou-me de neta. Foi um sonho. Nunca me cheguei a despedir do meu avô, tento o mais possível mantê-lo vivo dentro de mim e isso só é possível sendo feliz, como ele pediu. Hoje ainda há uma criança que vive escondida dentro de mim: A neta do meu avô.

terça-feira, abril 22, 2008


Espera por mim.
Deixa-me maquilhar as feridas antes de sair.
Não quero que me olhes com pena.
Não quero que repares que tenho passado.
Olha-me nos olhos e segura-me nas mãos.
Sorri, muito, com vontade.
Da mesma maneira que sorriem as crianças.
Sê solto de costumes e entrega-me a vontades.
Tenho tanta vontade de sentir.
Tanta vontade de destapar o corpo.
Que me arranhem com garras no amor.
Que me retalhem de novo o coração ao vento.
Espera por mim.

quarta-feira, abril 16, 2008

Ciclo vicioso


Estava sentada no sofá e fumava um cigarro. Pensava na vida. Pelo menos ela pensava que estava a pensar na vida. Estava alienada de tudo naquele momento devido ao que tinha fumado com os amigos na jardim em frente à sua casa. Os amigos, o jardim, os olhos vermelhos, a droga escondida no bolso, o furo no nariz, e os sorrisos. Nunca imaginou que a sua vida pudesse mudar tanto num ano só, mas o facto é que mudara imenso.
Os amigos eram parte importante da sua vida. Era com eles que bebia os cafés intermináveis depois do almoço, era com eles que falava de discos e de livros. Foram eles que a incentivaram a escrever poemas que eram lidos de barriga para o ar na relva do jardim frente à sua casa. O jardim era uma espécie de habitat onde eles se concentravam horas a fio, mesmo que não houvesse assunto, discos, livros ou poesia para conversar. Talvez por falta de assunto alguém trouxe a droga no bolso para ver o que acontecia. E aconteceu, muitas mais horas a rir sem parar de tudo, a falar de nadas que pareciam tudo, a contar o que não se tinha coragem, a criar laços transparentes entre eles ou baços,caso a memória do dia anterior persistisse. Foi numa dessas tardes animadas com droga no bolso que foram todos ao bairro alto fazer o piercing no nariz. Era um sonho desde sempre. De um sempre recente que não sabia ao certo onde tinha começado. Nesse dia quase todos fizeram qualquer coisa para satisfazer as hormonas ainda adolescentes e já cheias de estimulos.
Finalmente sou quem sempre quis, pensara. Estudava ainda para não ouvir o sermão dos pais, que cegos, nada viam mudar à sua volta. Fotografia é uma área bonita, dizia a mãe. O pai não dizia nada, vivia ausente afogado no copo do whisky que já tinha uma marca permanente na mesa da sala. Também ela bebeu muitas vezes das garrafas que encontrava escondidas na sala e na cozinha. Também ela se ausentava por minutos da vida, da sua vida, enquanto observava detalhadamente o comportamentos dos outros. Sorria. Sorria sempre que via alguma coisa de extraordinária como os sentimentos. A sua poesia era feita dos seus momentos ausentes e da vida dos seus amigos deitados na relva do jardim de barriga para o ar e com a droga no bolso.
O cigarro apagou-se pendurado na mão enquanto as cinzas jaziam no seu colo. Adormecera, cansada do ciclo vicioso da vida.

terça-feira, abril 15, 2008

Hoje é o meu dia mais feliz...

un, deux, trois, quatre, cinq, six, sept, huit, neuf, dix, onze, douze, treize, quatorze, quinze, seize, dix-sept, dix-huit, dix- neuf, vingt, vingt et un, vingt-deux...







Quem diria que aos 22, eu ia dar numa de Bad Girls...

terça-feira, abril 08, 2008

Tortura quotidiana


Era terça-feira. Passavam poucos minutos das nove da manhã, e contrariamente à sua habitual predisposição para dormir até tarde, não tinha sono. Muitos dos seus hábitos estavam de um momento para o outro a mudar drasticamente, e por muito que ela tentasse contrariar essa mudança o facto é que não tinha sono. Ainda na cama, virou-se de barriga para cima e quase sem forças levantou-se sem olhar para trás. Ficou sentada na cama. Observava as suas mãos. A pele estava seca e com manchas. Por mais que se quisesse esquecer de tudo o que se passava, havia sinais por todo o lado que mostravam que as coisas não estavam bem.
Entrou na casa de banho e evitou o espelho em todas as posições que se colocou. Olhou para a escova do cabelo durante alguns segundos e sorriu. Aquela era sempre a primeira coisa que fazia, pentear o seu longo cabelo ruivo. Mas hoje não. Agarrou na escova de dentes e abriu a torneira. Assim que começou a escovar os dentes, uma dor atravessou-lhe as gengivas e viu-se obrigada a parar. Os filamentos suaves da escova comprada de propósito para não a magoar entranhavam-se na pele e abriam feridas. As lágrimas pararam aquela rotina. De repente o espelho abriu o rosto à sua frente. A boca em sangue. A dor. A pele branca, seca e magra. E o cabelo que desaparecia de dia para dia. Enquanto se olhava no espelho chorava. Não tinha pena de si, mas também não aguentava aqueles sentimentos todos que a assombravam sempre que tentava fazer a sua vida normal. Estava esgotada, e todas as forças pareciam agora empurra-la em sentido contrário ao que queria seguir.
Lavou a cara e a boca e saiu de novo em direcção ao quarto. Pôs um lenço cor-de-rosa na cabeça que tinha sido oferecido pelas antigas colegas de trabalho, que agora só ligavam a perguntar como ela estava. Gostava de se ver assim, com aquela cor toda na cabeça enquanto deixava à vista algumas mechas de cabelo que lhe restavam. Eram mechas de cabelo que provavam que nem tudo estava perdido. Como se se tratassem de pedaços de esperança que viviam ainda agarrados a ela, pedaços de um eu agora em decomposição. Vestiu uma túnica de linho verde clara, um tecido leve e fresco, que lhe aconchegada o corpo, de todas as torturas que podiam neste momento ser as roupas para si.
Já na cozinha, tomou os comprimidos e sentiu as náuseas que desde ontem lhe aconchegavam o estômago. Era normal. Já estava a ficar habituada a toda aquela nova rotina, mas fazia tudo para a contrariar. Durante uns tempos ainda manteve o hábito de ir correr para a praia. Hoje não era capaz dessas proezas, o tratamento deixava-a fraca, os vómitos e a má disposição eram uma constante nos dias seguintes ao tratamento. Alimentava-se como se fosse uma criança, nada de comidas fortes e pesadas, tudo muito ligeiro, muito líquido, nada de fritos, nada de ácidos, só coisas frias ou à temperatura ambiente. Era como se fosse um passarinho, pouca comida de cada vez e várias refeições por dia, refeições essas que nos dias seguintes ao tratamento eram um autêntico suplicio.
Nunca se queixou de nada. Sempre que tinha de explodir tentava faze-lo quando estava sozinha e longe dos olhares de pena dos que rodeavam. Estava farta da frase “vai tudo correr bem!”. Era este o sintoma da doença que afectava os outros, as limitações de discurso. Sempre a ilusão, sempre a mentira, todos os dias o mesmo esperar. A mesma tortura quotidiana.

quarta-feira, abril 02, 2008

Turvar

Gostar demais
Sentir demais
Pensar demais
Errar demais
Esquecer demais
Provocar demais
Maré demais
Luz demais
Amar demais

As ilusões turvam o amor.