quarta-feira, novembro 29, 2006

Bailarina


Porque dói no tempo
Porque se sente no sentir
Porque um porquê não é justificação
Vejo os projectos de ontem
Espalhados pelo chão
Pisados um por um em
Pontas de bailarinas sem aulas
Em pontas de abismos circulares
De um gesto rodopiado arriscado
Pérolas que saltam dos colares
Misturadas com a tortura
De uma musica não encerrada
Porque um porquê não tira do chão
Nem anoitece o cair em que estás deitada
Não há estrelas cadentes
Para guardares no regaço
E até poucos rumos fora dos poentes
Fechas portas sofridas de menina
Abres janelas em toques pouco sentidos
Porque um porquê não justifica
Que num acto desajeitado de bailarina
Faças piruetas da vida
Sufoca o teu ar de pescoço erguido
Porque não podes perder a pose
Daquilo que acham que és
Porque dói tanto, tanto, tanto
Levar a vida sem as palmas dos pés
Gira o tule apertado numa cintura
Sem medidas de gente
Desordena a poeira da vida
Que nem sempre viste feliz
Abafa o ar em que te moves perdida
Porque é assim que o teu deus diz
No teu mundo sem palco
Onde danças contorcida sem dores
Onde choras por gestos
Mas nunca por amores
Arruma as tuas sapatilhas
No meio de flores
Descalça essas apertadas gargantilhas
Que te sufocam gritos de bailado
Abre os braços na luz escura de projectores
Descalça de tudo o que te aperta a memória
O teu número começou
Sem publico mal amado
Dança agora em cima de tudo
Que julgavas já ter pisado.

Não procures pela menina de Ontem


Não procures pela menina de ontem, ela deixou as bonecas perdidas num lugar desconhecido, num lugar de antes, ela já foi, partiu para um depois que não conheces.
Passavas o tempo a torcer o nariz, e fazer caras feias ao bicho pequeno que desarrumava a casa, e trazia os filhos para todas as divisões, perdias-te nos gritos, e ela escondia-se debaixo das cadeiras, tu….tu não podias fugir.
Ela sorria sem ser preciso luz, ela brindava tudo o que a rodeava com uma alegria contagiante, tu fechavas o sorriso e trazias as nuvens para a frente do seu sol, ela era pequena, ela era engraçada, tu estavas a crescer na vida.
Encontrava-te nos cantos a chorar de amores por outras miúdas, que já tinham sido miúdas nos teus tempos de caixa de areia, de baloiços, e passeios no parque, tu ignoravas as perguntas e todos os porquês, ela era pequena, quase insignificante, mas tinha uma vida sem fim.
Davas com ela em brincadeiras de princesas, coroas, castelos e ilusões encantadas com a inocência dos anos verdes, fantasias que ela ainda hoje guarda nos olhos brilhantes.
Como gostavas tu daqueles olhos brilhantes que se passeavam em frente a televisão e te seguiam os movimentos pela casa, como gostavas tu de ver aquele sorriso brotar da simplicidade de um gesto quase banal nos teus olhos.
Eram dias de um sol feliz que não tem vergonha de mostrar a cara, mas tu teimavas em te esconder dela, em esconder-lhe as bonecas nos caixotes para depois a veres que nem uma barata tonta a correr, ela era apenas uma miúda pequena.
Onde está a menina de outros tempo? Onde estão os caixotes das bonecas? O que aconteceu depois de tudo?
Perguntas agora ao tempo para onde levou a tua menina de olhos brilhantes que cabia debaixo das cadeiras. Não perguntes por ela, o ontem é tarde demais, procura-a no depois, despe-a da inocência, ela esqueceu já as bonecas nalgum lugar perdido.

Porque te esqueceste de mim pai?


Um jardim pequeno e um baloiço ao fundo. Uns braços empurram a cadeira do baloiço vigorosamente enquanto umas gargalhadas miúdas sufocam o ar.
- Com mais força pai, ajuda-me a tocar com os pés no céu!
Uma miúda pequena grita do baloiço enquanto se engasga nas suas gargalhadas, os cabelos quase loiros mudam de direcção consoante a força dos braços e do sorriso que vem de dentro do pai. Tem um vestido azul, não do azul do céu que quer tocar com as pontas dos pés, nem do azul que chega ao fim da noite, um vestido do seu azul que lhe acende os pedaços de cabelo loiro sobre o rosto, tem uma pela branca como se tivesse sido mantida virgem do sol até hoje. Os braços continuam a embala-la de trás para a frente, da frente para trás, sei que está feliz e sei que gostaria de ficar naquele embalo até os seus cabelos não possuírem nenhuma madeixa dourada.
O pai vai ajuda-la a tocar no céu com as pontas dos sapatos pretos já sem cor das brincadeiras e das correrias. Sei também que vai guardar para sempre consigo este momento, o pai ao empurrar-lhe o baloiço empurra também para dentro dela as memórias felizes desta tarde. Vai sempre recordar a tarde em que o pai a empurrou no baloiço do parque, em que escreveram os nomes na areia do jardim, em que andou por cima dos seus sapatos no corredor, em que o pai lhe fez cócegas até ela não conseguir respirar, em que foram ao parque de diversões, em que o pai lhe ofereceu uma cassete de desenhos animados nova…Lembro como se fosse hoje o dia em que me trouxeste aquela guitarra cor-de-rosa que brilhava e tinha botões em arco-íris, era o meu brinquedo favorito. Os anos vão passando, mas as memórias felizes permanecerão sempre em cima das que estão manchadas de dor. O pai estará sempre presente, ele vive ninguém o levou, talvez até fosse melhor o terem levado, talvez a menina de hoje não se sentisse esquecida.
Os cabelos loiros escureceram com o sol que se apagou vezes sem conta para depois voltar a acender nas manhas seguintes. A menina foi à escola, andou de baloiço sozinha, aprendeu a ler e a escrever, dançou nas festas da escola, recordo uma vez que estiveste comigo pai, um concurso de música em que me levaste ao palco com os olhos espelhados de orgulho por mostrares que era a tua menina que estava lá. 10anos. A ultima vez que te recordo perto psicologicamente.10anos.
A menina foi a melhor do ano, a menina encantou amores, desencantou paixões, a menina criou gostos, sabes quais são os meus livros favoritos? Sabes de que escrevo todas noites? E as musicas que a menina canta escondida no quarto sabes quais são? Qual foi a ultima vez que ela correu para ti com magoas para te deitar no colo?
Será que não te esqueceste senhor dos braços ágeis que empurrava a menina de cabelos loiros no baloiço, de umas quantas perguntas ao longo da vida? Será que era difícil actualizar a memória dos gostos pouco constantes de um rebento que crescia à tua frente? Muito fácil, bastava saberes amar aquilo que vias todos os dias naquele baloiço velho e branco que tu próprio concebeste.
A menina nunca foi má menina, vivia a vida sem grandes sobressaltos, sempre fui sossegada eu sei, com um sorriso do tamanho do mundo colado ao rosto guardo sempre junto dele as vezes que me empurraste no baloiço, não tenho mais nada para guardar.
Porque te esqueceste de a empurrar durante 10anos senhor das braçadas vigorosas? Porque nunca me empurraste com força suficiente para tocar com os pés no céu?
Porque te esqueceste de mim pai?

Dentro do Toque

Arrepio, cabelos revoltos de uma furia que não é tua nem de ninguem.Faz frio sem cessar lá fora. Ainda bem que estamos cá dentro, pensou, dentro de nós, dentro um do outro como sementes protegidas do que anda por aí. Continuou a reflectir, que significaria estar dentro?
Ninguem consegue estar dentro de ninguém, salvo em momentos em que a natureza e o ser humano se conseguem mutarnos sentimentos e nos restos mortais de cada um. Mas ele sabia que estavam dentro. Do corpo, da barriga, dos braços, das pernas, das mãos, dos olhos, do cabelo, do coração, sim, porque o coração é uma bela metáfora para o que se desconhece.
É do coração e todo o mundo fica satisfeito devido às generalizações e romantismos impregues naquele orgão que dizem comandar tudo.
Ora, ele sabia que estar dentro não era estar no coração, nem queria lá colocar ninguem para ser feliz, afinal quem gostaria de passar dias e noites num lugar que mais parece um serviço de observação com os seus bip-bip constantes? Um lugar onde entra e sai tanta gente diferente, todos os dias, a todas as horas, que mais parece uma biblioteca cheia de histórias que só a nós interessam.
Não era lá que a queria guardar, não lhe daria um lugar assim. Gostava mais de pensar que estar dentro fazia parte de estar no espirito que é imortal, e contém energia do universo. Onde imaginava ter um arco-iris de cores que acalmam, um lugar onde ela estaria tranquila e poderia descansar uma eternidade dentro de si.
Que bom que é ter-te dentro de mim, a colorir-me o espírito, disse-lhe num tom pouco comum de ser mostrado pelos homens fortes no reflexo do espelho. ela sorriu-lhe com a melhor pose a ser fotografada, segurando delicadamente os musculos que lhe movem as feições. Sentiu a união que os fazia passar dias e noites em poucas conversas e muitas meiguices. Concordavam que no silencio também se tinham optimas conversas.
Passou-lhe a mão pelo rosto, acariciando a pele escondida por de trás da barbaque trazia como campo de ervas daninhas sem organização premeditada. Sabia bem tocar-lhe. sabe sempre bem sentir quem se ama, sentir a sua presença e o calor da realidade.
Não pensavam no toque como algo figurativo de aproximação dos poros, sim era esse o caso, mas não é disso que se trata. Tal como sabiam estar dentro um do outro, também sabiam que não era necessario estarem juntos para esse toqu acontecer.
Há pessoas que nos tocam com os olhos, com as palavras, com as expressões, tocam-nos de tal forma que por vezes até um silencio se torna precioso. Se fará parte da realidade este toque que nada tem para ser explicado, porque não existem palavras, eles não querem saber.
Acendeu-se o escuro entre o toque, é disto que são feitos os sentimentos, da comunhão do que há, da miscelania de sentimentos e toques.
A raiva toca-se com a violencia, o amor toca-se com o carinho, a felicidade toca-se com a alegria, o desespero toca-se com a loucura, o ciúme com a desconfiança, sentimentos tocam sentimentos.
E eles tocaram-se, o frio lá fora, os cabelos revoltos, o caus posto na rua de Inverno semeadas, e a paz lá dentro. Sempre dentro um do outro.
- És bonito.
-Abraça-me...