segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Um dia hei-de ser anjo- alma do avesso


Quando me vi no espelho pela manha, observei-lhe as costuras certinhas, todas alinhadas num nylon branco, foi bordada à mão, cada ponto foi dado com dor para eu na vida transformar em amor. Tinha vestido a alma do avesso hoje, com as asas presas do lado de dentro mas que importa hoje nem parece ser dia de voar nas minhas fantasias.
Sai pelas ruas, olhos nos olhos com as pedras da calçada, uma e outra, ali estão elas nos mesmos lugares de sempre, é preciso vestir a alma ao contrário para reparar nas insignificâncias que nos caem de cima sem percebermos e mancham os casacos quando andamos na rua, coisas que nos cobrem os dias. As pedras de sempre por mim pisadas uns dias umas, quase todas calcadas mas só hoje vistas pela ligeira inclinação da minha cabeça provocada por ideias que não dormem há muito na minha que não aguentam o corpo sobre as pernas, que são pesos mortos.
Não vi as pessoas que se cruzavam comigo nesta jornada de correrias, de coisas por fazer, de coisas para ver, de coisas para comprar, de coisas por dizer, de coisas para pensar, mas sempre a andar, os rostos, os sorrisos, as preocupações, essas coisas que vem impressas que nem jornais da manha, não as vi, queria só respirar o ar que tinha pela frente e que me empurrava os cabelos contra o destino.
Hoje não está tempo para voar, parei, a delicadeza da alma sobre a pele e as penas das asas amachucadas pelas fibras daquela vestimenta tão nobre afligem-me à medida que tento avançar, sentimentos descontínuos, luzes que acendem e apagam nas janelas desta cidade, luz e escuridão, no terceiro andar, no sétimo andar, um pisca-pisca que me arde nos olhos cá dentro como se fosse perseguida pela luz e pela escuridão enquanto as pedras lá em baixo me seguram os pés para não fugir para longe, para se sentirem protegidas, para não serem pisadas por almas sujas como a minha.
Vou voltar para trás, tenho as asas sujas da vida a picarem-me a pele ferida pela vida, tanta fuligem que vejo caída pelo corpo que me sinto tentada a pensar que não se aproveita nada de puro e verdadeiro em mim.
Janelas que se acendem e apagam, brilham nos meus olhos só hoje as vêem porque vesti a alma ao contrário ninguém reparou no meu corpo tombado, que o vento abraça com a poeira.
Vou voltar a adormecer. Amanha coloco alma no lugar, foi um sonho porque as asas estão sempre dispostas a voar.

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