As horas percorrem círculos em volta daquele jantar como se fossem cavalos de corrida silenciosos. O barulho dos talheres no toque com o prato, orquestra da noite, exclusividade dos nossos ouvidos e dos que se encontram ao nosso redor, embalam a conversa que de inicio parecia perra e difícil mas que com o colar dos lábios nos copos em silencio de crime flúi tão levemente que acho que estamos a conversar desde sempre.
Gosto da maneira como me olhas enquanto falas seja de que assunto for, não sei se é uma medalha que trazes da guerra permanecer com a expressão inabalável ou se sou eu que te embalo as estrelas que tens no lugar dos postigos castanhos vidrados da tua alma.
O jeito como seguras os talheres leva-me a calçar a imaginação correndo em busca de como será o teu toque em mim, o murmúrio discreto da faca na carne que podia até ser a minha, e o arrepio que escorre agora frio pela minha pele, a maneira como a comida te permanece imóvel no prato, a delicadeza com que os teus dentes num toque canibal se preocupam em não magoar as paisagens que viste por ai, maldita imaginação de ti, não consigo sequer embrulhar os sorrisos para te os entregar.
Tenho-te guardado no meu peito, ai se tu soubesses como cavalgas na minha mente, se soubesses as vezes que realizo por estares tão preso no meu coração já és um pedaço dele. Os sentimentos tem destas coisas, enganam-nos à medida que crescem como aqueles miúdos a que já lhes falta os dentes e sorriem sem medo das maldades.
Tenho de fazer desde um jantar normal, a comida já me observa com certa duvida se vai ser para hoje ou para os cães famintos que aguardam nas traseiras do restaurante porque ninguém lhes quis a vida, mas os meus olhos famintos das tuas palavras não conseguem se apagar dos teus. Ajeito os pés dentro dos sapatos que trouxe para notares como são bonitos os meus pés quando passearmos no final da noite pelos jardins abandonados desta cidade, não que eu acredite que eles sejam, mas tenho de te fazer acreditar nisso para os quereres negociar, para os colocares em tua casa depois de deitares os sapatos fora, não gostas do supérfluo, e é esta a maneira que tenho de me abstrair do álcool que me obriga mil vezes em cada segundo que morre a pensar como será que vai acabar esta história de sempre.
Tocamo-nos sem um gesto programado para sair bem como no teatro, pareço uma miúda de 12 anos com medo do que vai ser o seu primeiro beijo, tu sorris sei-te culpado, os teus olhos reclamam esse juízo. Já descobriste não sei se nas minhas mãos que embalam um verniz já ressequido, ou se nos meus olhos que parecem duas esferas de fogo cintilante, mas descobriste o almejo que me impulsiona.
Ajeitas a gravata num acto desajeitado, um sufoco para a ocasião porque pareces bem assim e sabes disso, mal tu sabes que poderias estar de pijama com bonecos de uma banda desenhada mal elabora que eu te olharia da mesma forma, com a mesma intensidade.
Quem sabe se um dia numa daquelas noites frias depois de um jantar parecido com este, as nossas personagens não se conhecem num abraço terno num anglo bem elaborado.
Vamos acabar este jantar numa sobremesa de céu decorado de milhares de pirilampos reluzentes explodindo de luz, "com as cabeças juntas, segregando banalidades deliciosas na euforia suave do álcool" porque hoje somos embalados desta maneira que amanha na ressaca nos calará a boca por não haver desculpa de ser sincero.
1 comentário:
Vim aqui parar... pelo google e pela citação que deixaste no meu blog. A blogoesfera é mesmo redonda. :-)
É muito bonito o que escreveste aqui. Tens uma invejável capacidade de descrever sentimentos, aquilo que acontece quando parece que nada de especial ocorre...
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