quinta-feira, abril 24, 2008

A neta do meu avô.


Só me dei conta que já não era criança quando comecei a ver as pessoas morrerem. Quando somos mais novos a morte é algo absurdo com o qual imaginamos somente lidar quando crescermos e tivermos tempo para pensar. Quando a morte de alguém nos afecta o suficiente e sentimos necessidade de nos despedir deixamos de lado a infância. As crianças não lidam com a morte, as crianças respeitam-na mesmo não sabendo ao certo do que se trata.
Sempre imaginei que a morte fosse uma coisa boa até porque as pessoas que sabia mortas tinham sido vítimas de doença prolongada ou de velhice. Era natural interpretar as coisas como um ciclo, e não era por me dizerem na catequese que as pessoas depois de morte iam se encontrar com Jesus que achava tudo aquilo melhor. Era natural e acontecia a toda gente, chegava a hora e lá íamos nós, porque merecíamos não ser velhos e não estar doentes em outro lugar. Era bom pensar assim. Até que um dia o meu avô paterno resolveu se suicidar. E agora? Para onde vão as pessoas que morrem e não estão doentes? Porque é que ele não queria viver mais se, para uma criança de seis anos viver é a melhor coisa do mundo? Temos a mãe, o pai, os amigos, os brinquedos, a escola e o gato. Não percebi, e apesar não compreender que aquilo era mesmo uma despedida, estava mais preocupada em perceber como é que tinha acontecido. Eu sabia que havia um motivo. Foi a descoberta desse motivo que fez com que passasse do mundo das crianças para o mundo inexplorado dos adultos. Fui compreendendo a morte do meu avô ao longo dos anos. Gosto de pensar que morreu de desgosto, que se matou por amor. Morrer por amor é uma forma bonita de nunca abandonar a infância, afinal o amor é sempre possível. O meu avô suicidou-se por saber que a minha avó estava com um cancro terminal que em breve lhe tiraria a visão e também a vida. A minha avó não morreu da doença, a minha avó morreu para ir ter com o meu avô, porque depois da morte a criança que eu fui, acreditava que não havia mais nada além da paz de se estar como sempre se desejou.
Não fui ao funeral de nenhum dos meus avós paternos, estava ocupada a descobrir a morte e ainda não tinha noção do que seria uma verdadeira despedida. Como era de esperar vi muito mais gente morrer, pessoas velhotas, pessoas doentes e outros que morreram por amor.
Só com 11 anos descobri que a morte envolvia uma despedida e que isso era o mais difícil de tudo, depois de compreender os motivos. O meu avô materno adoeceu com um problema nos pulmões e passou muito tempo no hospital. Ainda não era muito velhote, mas era meu avô e por isso tinha de ser considerado assim. O problema da morte do meu avô estava ligado ao saber que isso ia acontecer e também ao facto de isso demorar tanto para acontecer, o que me arrastou num processo de adiar despedidas . Até um dia. Foi desolador. Depois de descobrir o que é a morte com seis anos, foi muito mais complicado aceita-la e conseguir despedir-me de quem não morre por amor, mas “por favor”.
Senti muitos remorsos de não ter ido ao funeral do meu avô despedir-me dele como fizeram outras pessoas que até gostavam menos dele que eu. Mas o meu avô deu uma ajudinha para se despedir de mim e nesse mesmo dia fez com que eu corresse sem parar atrás dele que ia num autocarro vazio. Corri até não ter forças. Ele ao ver-me parar, disse-me adeus e sorriu. Ele estava feliz, e disse-me para ser feliz como sempre fazia, chamou-me de neta. Foi um sonho. Nunca me cheguei a despedir do meu avô, tento o mais possível mantê-lo vivo dentro de mim e isso só é possível sendo feliz, como ele pediu. Hoje ainda há uma criança que vive escondida dentro de mim: A neta do meu avô.

11 comentários:

Fipa disse...

=)* o melhor de ti...
(sabes k me custa comntar cenas destas..;) )

susana disse...

Não se pode morrer sem fazer as pazes com todos, sem dar um beijo a toda a gente.
Ironicamente, isto deveria estar escrito nas regras da vida.

Todas as pessoas que partiram arrancaram-me um bocadinho ao seu gosto.

(Acho que este é um dos teus melhores textos.)

telma disse...

há pouco a dizer pertante um texto destes.
e, quem sabe se os teus avós não estão numa longa viagem ou numa ilha deserta? (é menos duro pensar assim). **

O Profeta disse...

Porque sonhas com o outro lado
Enches o vazio da eterna espera
Amas quem não podes ter
Pintas de realidade a quimera


A liberdade do pensamento vive entre dois mundos…


Convido-te a conhece-la…


Bom fim de semana


Mágico beijo

Jaime disse...

O que escreveste é tocantemente verdadeiro, mais uma vez. Fez-me pensar que há de facto essa altura em que deixamos de ser crianças, e, acho que mais tarde, uma outra altura em que nos apercebemos de que, também nós, não só somos adultos, mas também mortais. Mortais num sentido ao mesmo tempo profundo e prosaico do termo - a de que só nos resta viver o resto da vida. Acho que é uma coisa que também aprendemos com a morte dos outros.

Gasolina disse...

Texto belissimo, um conceito a que me prendo em alguns pontos também.

Deixo-te um beijo.
Foi bom aqui regressar.

pegueitrinquei disse...

lindo, o teu texto... E sei muito bem do que falas, nos últimos 5 anos perdi avó, avô e a minha mãe... e vivi na mesma casa que eles toda a minha vida. Agora é só vazio e saudade...

=(

*

Abssinto disse...

E um dia envelheceremos e para alguém morreremos. Rios.

Laura Ferreira disse...

identifico-me imenso com as tuas palavras. também em mim há uma data de pequenitas...

xistosa, josé torres disse...

Grandiloquente e grandiloquência na descrição da inocência à morte.
Afinal o último estágio da nossa passagem.

RC disse...

Não imagionas como me toca, nesta fase, este teu post.

Xi comovido.