terça-feira, março 11, 2008

Rua dos Morangos

A primeira coisa que vejo quando saio do metro são sempre os pombos. Ao contrário de toda gente, eu gosto de pombos. Encaro-os como uma espécie de tempero característico desta cidade que a cada dia que passa fica mais velha e adormecida em si mesmo.Ao subir a avenida, antes da rua dos morangos encontro de tudo. É como se fosse um centro comercial ao ar livre onde estão representadas quase todas as pontas do mundo. Pastelarias, todas com os mesmos doces nas vitrinas, talhos, que exibem gloriosos animais mortos pendurados por um gancho, frutarias, onde existem todos os frutos que se desconhecem, retrosarias, com artigos parados no tempo, sapatarias....O particular de todos estes cubículos é que metade dos comerciantes que se instalaram ali não são portugueses. Deve ser esse o motivo pelo qual penso sempre que aquela rua me faz lembrar uma Marrakech limpa e organizada. Depois de observar todo este andamento internacional, onde tenho de abrandar o meu passo cheio de pressa porque alguém leva a idade a pesar nos joelhos estou finalmente ao cimo da rua. Atravesso a estrada e entro num jardim, onde faltam flores no meio de algumas árvores que se vestem com calma para o início da estação. Contraditório a este pensamento do renascer da Primavera, este jardim é povoado por velhos. São tantos que por vezes nem noto a presença dos pombos quando ali passo. Estão sentados em bancos de jardim, em mesas onde jogam às cartas, ou mesmo de pé conversando uns com os outros a memória de outros tempos. Sempre que ali passo atravesso o jardim na diagonal onde me cruzo com aquela flora dominante e onde encontro sempre a figura particular. Essa figura particular é um velhote que se veste com fatos de treino de tecidos estranhos usados nos anos 90 e que fala sozinho como se fosse um deputado. Tem dias em que anda de pé de um lado para o outro para mostrar o seu descontentamento, em outros dias está sentado a olhar para o chão e a falar baixinho. Junto dele existe sempre um cão castanho, grande e fiel. Suponho que seja o seu cão, o seu fiel amigo que o escuta em todos os momentos e assim se integra naqueles pedaços de representação do real. É um quadro vivo, que além de mim, poucos dão atenção.Ao atravessar a estrada entro na rua dos morangos. A rua dos morangos não se chama rua dos morangos, mas gosto de pensar que sim. Nesta rua há imensas lojas de comércio tradicional, o comércio português adormecido que contrasta com a rua anterior dos meus passos. Aqui parece que nada andou nas linhas do tempo. As mercearias fazem lembrar as lojas da aldeia com tudo pendurado à porta. Existe, mais a baixo, uma senhora que faz arranjos de costura numa máquina antiga a pedal, e onde podemos ver pela janela um pequeno atelier cheio de bordados e coisas que eu pensava já não existir. Há pequenos cafés com apenas duas mesas lá dentro para clientes, duas padarias onde numa estão sempre três mulheres à conversa, e a outra está sempre fechada à hora que passo. Quase no fundo da rua há uma loja de mobílias que parece ter ido buscar todos os artefactos às casas das nossas avós, no entanto as mobílias estão imaculadas e ainda não estiveram em casa de ninguém. A rua dos morangos parou no tempo. Mas na rua dos morangos começou agora a primavera. Em todas as frutarias ou mercearias ao longo da rua existe pelo menos uma caixa de morangos na porta. São essas caixas de morangos que todos os dias mudam de preço devido à fragilidade do fruto e que dão um cheiro característico à rua dos morangos. Metade das vezes são frutos pequeninos, já meio pisados de tantas escolhas. A rua dos morangos parece ter adormecido há vinte anos para despertar agora com rugas. Há pessoas nas janelas que vêm passar os carros, velhotes que se arrastam pela calçada a cima com pequenos sacos de compras, por vezes morangos, muito poucos morangos no saco.

12 comentários:

Abssinto disse...

Que belo lugar de passagem, a perfumada e colorida rua dos morangos. "Marrakesh"...também gosto do som desta palavra;)
bj

pegueitrinquei disse...

Essa rua dos morangos, não sei bem porquê, deixou-me a pensar na rua das pretas...

Adorei! =)

Laura Ferreira disse...

lindo... é engraçado como as tuas palavras por vezes têm cheiro e cor. eu tenho muitas destas coisas que pararam no tempo. acho que é isto que nos faz escrever assim, não é?

Fipa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fipa disse...

hum....se n conhecexe o sitio ate kereria vivr a,pk fkei msm c vontade!xD lol inda bem k ves o mundo c oculos de sepia!=) e inda bem k ja decoraste o caminho!=)

Jaime disse...

Belíssima descrição. E também é preciso parar um pouco no tempo e apreciar os morangos, sim, se forem poucos que sejam bem escolhidinhos. :-)

Ana Si disse...

excelente descrição*

as velas ardem ate ao fim disse...

Só de te ler senti o cheiro dos morangos.Muito bonito o teu texto.

bjo

xistosa, josé torres disse...

Parece-me que não conheço essa rua, mas com a descrição estou a vê-la e senti-la.
É que mal vejo morangos, sinto que sou alérgico e que se lhe tocar ou os comer, fico com comichões ...

Mas como-os e nada sucede e depois desta descrição, não alergia alérgica ... (a redundância é propositada)

R. disse...

sente-se o aroma nas tuas palavras.bela descrição :)

beijinho,J!

Gasolina disse...

POrque será que reconheço na tua rua dos morangos outras ruas e vielas do meu imaginário?

...Porque têm cor e sabor e ainda rugas que mostram vida lá dentro.

Sandra disse...

Muito intenso e cheio de sentidos! Acho que todos conhecemos uma rua dos Morangos!!