quarta-feira, novembro 29, 2006
Porque te esqueceste de mim pai?
Um jardim pequeno e um baloiço ao fundo. Uns braços empurram a cadeira do baloiço vigorosamente enquanto umas gargalhadas miúdas sufocam o ar.
- Com mais força pai, ajuda-me a tocar com os pés no céu!
Uma miúda pequena grita do baloiço enquanto se engasga nas suas gargalhadas, os cabelos quase loiros mudam de direcção consoante a força dos braços e do sorriso que vem de dentro do pai. Tem um vestido azul, não do azul do céu que quer tocar com as pontas dos pés, nem do azul que chega ao fim da noite, um vestido do seu azul que lhe acende os pedaços de cabelo loiro sobre o rosto, tem uma pela branca como se tivesse sido mantida virgem do sol até hoje. Os braços continuam a embala-la de trás para a frente, da frente para trás, sei que está feliz e sei que gostaria de ficar naquele embalo até os seus cabelos não possuírem nenhuma madeixa dourada.
O pai vai ajuda-la a tocar no céu com as pontas dos sapatos pretos já sem cor das brincadeiras e das correrias. Sei também que vai guardar para sempre consigo este momento, o pai ao empurrar-lhe o baloiço empurra também para dentro dela as memórias felizes desta tarde. Vai sempre recordar a tarde em que o pai a empurrou no baloiço do parque, em que escreveram os nomes na areia do jardim, em que andou por cima dos seus sapatos no corredor, em que o pai lhe fez cócegas até ela não conseguir respirar, em que foram ao parque de diversões, em que o pai lhe ofereceu uma cassete de desenhos animados nova…Lembro como se fosse hoje o dia em que me trouxeste aquela guitarra cor-de-rosa que brilhava e tinha botões em arco-íris, era o meu brinquedo favorito. Os anos vão passando, mas as memórias felizes permanecerão sempre em cima das que estão manchadas de dor. O pai estará sempre presente, ele vive ninguém o levou, talvez até fosse melhor o terem levado, talvez a menina de hoje não se sentisse esquecida.
Os cabelos loiros escureceram com o sol que se apagou vezes sem conta para depois voltar a acender nas manhas seguintes. A menina foi à escola, andou de baloiço sozinha, aprendeu a ler e a escrever, dançou nas festas da escola, recordo uma vez que estiveste comigo pai, um concurso de música em que me levaste ao palco com os olhos espelhados de orgulho por mostrares que era a tua menina que estava lá. 10anos. A ultima vez que te recordo perto psicologicamente.10anos.
A menina foi a melhor do ano, a menina encantou amores, desencantou paixões, a menina criou gostos, sabes quais são os meus livros favoritos? Sabes de que escrevo todas noites? E as musicas que a menina canta escondida no quarto sabes quais são? Qual foi a ultima vez que ela correu para ti com magoas para te deitar no colo?
Será que não te esqueceste senhor dos braços ágeis que empurrava a menina de cabelos loiros no baloiço, de umas quantas perguntas ao longo da vida? Será que era difícil actualizar a memória dos gostos pouco constantes de um rebento que crescia à tua frente? Muito fácil, bastava saberes amar aquilo que vias todos os dias naquele baloiço velho e branco que tu próprio concebeste.
A menina nunca foi má menina, vivia a vida sem grandes sobressaltos, sempre fui sossegada eu sei, com um sorriso do tamanho do mundo colado ao rosto guardo sempre junto dele as vezes que me empurraste no baloiço, não tenho mais nada para guardar.
Porque te esqueceste de a empurrar durante 10anos senhor das braçadas vigorosas? Porque nunca me empurraste com força suficiente para tocar com os pés no céu?
Porque te esqueceste de mim pai?
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Fogo, chorei a ler isto, Joana***
O silêncio numa lágrima manchada de rimmel. O meu pai nunca me empurrou no baloiço.
"Eli, Eli, lema sabachthani?"
Enviar um comentário